Somente mais um devaneio

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Sempre tive esses devaneios. Tanto acordado, quanto sonhando. Esse mundo que eu criava e sonhava era tão real que parecia que eu iria dormir aqui e acordar lá.

Lembro de minha infância na escola. As aulas de magia criativa me davam sono. Era tudo tão não explicado e mágico que me dava náuseas, além de ser desinteressante. Aquela matéria que envolvia os números era uma das poucas que me agradavam. O meu grimório era um dos mais incompletos de toda a instituição, mas eu nem ligava.

Os esportes estranhos que eles praticavam tão empolgadamente não me agradavam. Para mim era só mais uma matéria mágica idiota. Algumas vezes eu brigava com alguns outros alunos, o que ninguém tinha muita experiência, e eu acabava pegando uma severa punição.

Às vezes eu tinha que desafiar alguma entidade travessa para um partida de charadas, para que eu pudesse passar por um certo portal.

Vamos mais uma vez? Eles perguntavam, com um brilho insano nos olhos. Era o feitio deles. Se nós os derrotássemos, seríamos considerados mais espertos, e teríamos charadas melhores para eles, para "incrementar" o próximo desafio.

Alguns conhecidos meus se tornavam grandes amigos dessas criaturas, sempre vivendo o risco ou de serem barrados, ou devorados por alguma esfinge maluca.

Tudo era tão irracional, fantástico que dava raiva, além de tédio. Digo, porque eu deveria responder um enigma para passar? Se eu não passasse, eu poderia ou ficar ali e tentar acertar depois o enigma, ou talvez até fosse devorado! Eu acertar o enigma prova o que? Que eu sou digno de voltar para a casa? Uma dessas vezes tive que ficar até depois de anoitecer no portal, só porque errei o maldito enigma.

Cresci diferente daquelas pessoas que me cercavam, que pareciam se contentar com aquela vida simplória. Eles se achavam felizes demais com tudo aquilo mesmo com o Duque abusando de toda a população, cobrando impostos tão irracionais quanto às matérias de minha escola. Tudo para eles era lindo e se contentavam com uma vida normal, sem altos e nem baixos.

O homem que era considerado um deus para uns era um salafrário de marca maior. Um de seus primeiros mandos fora aumentar os impostos, alegando utilizar eles para um melhor proveito que nós mesmos fazíamos. Depois de um tempo, ficamos sabendo de uma festa de gala em seu território, no qual bêbedo, ele afirmava que o povo garantia que eles se divertissem.

O que eu gostava mesmo era das histórias de fantasia, aonde não havia magia, e sim a tecnologia. O meu estilo de fantasia preferia era o de espionagem, no qual o espião tinha que contar somente com a sua inteligência, perícia e tecnologia. Nada de magias nas histórias. Haviam algumas que misturavam a magia com a tecnologia, e ás vezes resultavam em bons contos, mas não chegavam perto da pura fantasia.

E desde pequeno eu nutria esse sentimento, essa afeição pela fantasia. Os outros me achavam uma criança sonhadora demais.

Menino, eles diziam, pare de ler tanto essas coisas inúteis e vá estudar, ou você ficará para trás. A vida de gente grande não é para pessoas que ficam lendo livros de historinhas.

Mas nunca consegui seguir esse tipo de conselho. Eu gostava tanto da fantasia que criei meu próprio mundo, no qual fui trabalhando desde pequeno. Eu criava tanto que chegava a sonhar com ele. Um mundo onde a tecnologia prevalecia, e os pesquisadores eram estritamente ligados a ciência.

A ciência moldava esse mundo assim como a magia moldava o nosso. O dinheiro também existia lá, claro, e era tão importante quanto no nosso mundo.

Lógico que nessa minha criação não seria um paraíso, porque senão não teria tanta graça. As histórias precisam de problemas para serem resolvidos. E muitos deles eram cruéis demais, mas toda história necessita de seus conflitos, e isso torna o mundo mais verossímil.

A corrupção lá seria muito presente, um dos maiores problemas e ameaças que meus personagens enfrentavam. Conflitos e guerras eram constantes por lá, muitos iniciados por problemas idiotas, como a cor da pele, territórios, religião, entre muitos outros. Claro que muitos desses problemas já existiam aqui, na realidade.

Eu gostava tanto desse meu mundo que me transportei para lá, criando a minha história e como seria a minha vida lá. Criei também os inconformados com a situação do mundo, e que gostavam de histórias de magia e monstros, porque era um modo de escape dele daquele mundo tedioso e cruel (assim como esse mundo é o meu escape. Eles não sabiam o mundo precioso que tinham).

Comecei a escrever sobre esse mundo, e pretendia publicar os livros, porque de certa forma eu queria que todos gostassem desse meu mundo e desejassem estar nele, sem a magia. Fiz todo o trabalho duro, sem usar de métodos mágicos para as pesquisas, porque não concordava com isso, e achava que era um tipo de solução para preguiçosos.

Esse mundo aparecia em meus sonhos constantemente, até que um dia eu sonhei com ele e acordei nele.

Estava em minha cama, olhando para o teto, até que eu percebi que aquele não era realmente o meu quarto, e sim aquele que eu havia descrito em meus escritos: Um quarto grande, simples, branco. Havia um computador, aquelas máquinas que eram a sensação dos escritores de fantasia no mundo mágico. A cama era de casal, e minha mulher dormia ao meu lado. Era mesmo a minha mulher, apesar de mais bonita e jovem, como eu havia imaginado.

Era tudo que eu tinha criado e querido. Eu ficava abismado com tudo aquilo. As roupas, a atmosfera, a arquitetura, a ciência e o fato da magia não existir. Eu tinha a minha família, exatamente como eu a havia criado. Eu comecei a questionar tudo aquilo, com os meus primeiros dias na nova sociedade.

Será que eu era o deus desse mundo e assim criado ele todo? E se sim, eu teria criado todos esses problemas, que agora pareciam invencíveis? Fiz tudo isso pro mundo parecer verossímil, mesmo que ninguém tenha lido nada.

Com o passar do tempo, a sensação de estar vivendo um sonho, foi sendo substituída pela sensação desse mundo sempre ter sido o meu lar, e eu apenas havia tido um sonho estranho com o outro mundo mágico. Eu me lembrava do meu passado, mesmo a sensação de tê-lo criado ainda permanecer, mesmo que fraca.

Eu agia com naturalidade, e o sentimento de culpa já muito havia passado. A cidade cheirava a cinzas, e mais ninguém parecia sentir, alguns diziam que quando se sente cheiro de coisas inexistentes poderia ser um indício de haver um tumor no cérebro. O que no mundo dos meus sonhos poderia ser resolvido com um simples ritual (e às vezes um tumor significava fonte de grande poder mágico, e o mago, poderoso, ficava louco), aqui era um problema dos grandes.

Fiz os exames ao lado de minha mulher, que apertava minhas mãos. Não conseguiram achar nada, mas, de forma suave, os médicos disseram que ainda não descartavam a idéia de eu ter um tumor cerebral.

Comecei a escrever sobre o mundo no qual eu havia criado nos meus sonhos, que antes me parecia tão real que antes pensava que eu vinha de lá. Agora eu via que era muita arrogância da minha parte pensar que eu havia criado esse mundo que eu vivia, que eu era o deus deles. O cheiro de queimado ainda continuava, mas eu já o ignorava.

Eu escrevia mais e mais, e fiquei muito envolvido com o trabalho. Eu tinha sonhos perturbadores. Sonhos com depoimentos de pessoas que pareciam com meus amigos, mas com roupas nunca projetadas pelo mundo da moda. Eu era interrogado por eles, mas eu não me via, era somente eles e uma lareira, com o fogo crepitando, parecendo querer me dizer algo em suas línguas que subiam em desciam, queimando madeira e papéis. Eu virava minha cabeça e lá estava a minha mulher, perguntando se eu estava bem, se eu tinha tido algum pesadelo.

Eu continuava no quarto padrão, e às vezes recebia mensagens eletrônicas em meu celular, muitas vindas de minha editora. Eu achava que iria parar de escrever, pois estava ficando obcecado com tudo aquilo. Mas eu escrevia melhor do que nunca. Era só escrever histórias que nos meus sonhos pareciam ser lendas populares.

Em um dos meus lançamentos um jovem da idade do meu filho mais velho chegou a mim e fez a pergunta que atormentava a muitos autores de livros, "De onde tira as suas idéias?". Eu parei de assinar o livro que estava na minha mão e olhei para o garoto, e de súbito, sentindo a resposta vindo e respondi:

"Sempre tive esses devaneios. Tanto acordado, quanto sonhando. Esse mundo que eu criava e sonhava era tão real que parecia que eu iria dormir aqui e acordar lá".

1 comentários:

Augusto Molkov disse...

Interessante, nitida influência dio Neil.